Acesso não tarifado: a última fronteira da neutralidade de rede

Quando a Internet surgiu no longínquo ano de 1969 e ainda se chamava ARPANET, a grande novidade era o protocolo TCP/IP. Dentre as muitas características que fizeram dele um sucesso, o agnosticismo em relação as aplicações estava entre elas. Na prática, isso significa dizer que a rede não diferencia aquilo que transporta. Para a Internet, não interessa quem ou quais são os pacotes enviados. Ela trata apenas de levar os dados de um ponto a outro da rede, indiferentemente de pertencerem a uma página da web, uma mensagem de texto, ou uma chamada de voz.

Isso permitiu o surgimento de uma infinidade de protocolos de aplicação que rodavam sobre o TCP/IP, tais como a própria web (o protocolo HTTP), o email e VOIP, de forma que o TCP/IP pudesse ser utilizada para os mais diversos fins.

Trata-se de uma característica fundamental para fazer da Internet a grande plataforma de inovação na qual ela se tornou, o que justifica sua relevância econômica, na medida em que é utilizada como plataforma para os mais diferentes negócios ao redor do mundo.

Por isso mesmo, a Internet sempre foi, desde sua concepção, uma rede neutra do ponto de vista técnico. Apesar disso, é compreensível e, até mesmo aceitável, que alguns pacotes tenham prioridade sobre outros. Alguns pacotes de email chegarem com poucos segundos de atraso para priorizar o tráfego de um stream de VOIP, por exemplo, não causa prejuízo algum ao usuário caso. Afinal, a natureza assíncrona do serviço de email torna-o indiferente a um delay de alguns segundos ao transportar mensagens de um ponto a outro da rede. No caso da email, é muito mais importante que os pacotes cheguem e menos relevante o tempo que eles levam para chegar. Já em aplicações de tempo real, como VOIP e vídeo, por exemplo, atrasos constantes de milissegundos podem tornar a aplicação praticamente inutilizável, prejudicando o usuário.

O problema ocorre quando operadoras e telecoms utilizam-se de justificativas técnicos para, na realidade, filtrar pacotes de aplicações que "colidem" diretamente com seus interesses comerciais. Um exemplo concreto seria interromper ou atrasar suficientemente a entrega desses dados de forma a inviabilizar ligações de VOIP, forçando o consumidor a consumir mais serviços de voz da operadora, maximizando assim seu faturamento, por exemplo.

Contudo, argumentos técnicos são facilmente rebatidos, dado que eles não se sustentam frente a concretude dos problemas apresentados e de suas soluções. A estratégia, neste caso, é criar MID (Medo, Incerteza e Dúvida) em relação ao crescimento da rede, argumentando que a própria Internet tornaria-se gradualmente inviável, ao ponto de haver um colapso de sua infraestrutura, caso nada fosse feito para mudar isso. Tal discurso surte efeito apenas em um público leigo ou mal informado, o que infelizmente constitui a maior parte da população e, principalmente, da classe política.

O Marco Civil da Internet foi aprovado há pouco mais de um ano, e já se encontra em vigor, representando um marco legal abrangente com o espírito de preservar a neutralidade da rede. Afinal, o parágrafo 3º da lei diz expressamente que "é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados".

Entretanto, a norma ainda precisa passar por regulamentada para que possa ter aplicabilidade em casos específicos. Em resumo, é preciso definir o que pode ou não ser considerado uma violação à regra.

Há um caso específico, aparentemente não contemplado na lei, cujo debate parece ter passado desapercebido por técnicos e juristas brasileiros: zero-rated.

Zero-rated é o termo em inglês utilizado para designar os acessos não cobrados à Internet. Esses acessos "não-tarifados" podem vir tanto na forma de alguns sites ou serviços escolhidos para serem "livre de cobrança" (nos moldes do que fazem algumas operadoras no Brasil ao permitirem o uso de redes sociais como Twitter, Facebook e WhatsApp sem o desconto de créditos da franquia); como na forma de um pacote básico de acesso sem tarifação inclusive para quem não contratou um pacote de dados, como é o caso do "Free Basics" do Internet.org, promovido pelo Facebook.

Aparentemente, ambos os casos são positivos, uma vez que parte-se da premissa de que algum acesso é sempre melhor do que nenhum acesso. Trata-se de um argumento falacioso e de difícil contra-argumentação, uma vez que ele apoia-se no pilar da inclusão digital, algo que sempre foi defendido por aqueles a favor da neutralidade da rede. Afinal, quem se declararia contra a inclusão digital?

Acontece que acessos desse tipo possuem diversos efeitos colaterais. Determinar quais são os serviços cujo acesso será "não-tarifado" coloca todos os outros concorrentes em total desigualdade, prejudicando o ambiente de inovação. Seria o Facebook aquilo que é hoje, se o acesso ao MySpace "não-tarifado" quando ele surgiu?

No caso do "Free Basics", cria-se praticamente uma Internet de 2ª classe (que pode acessar apenas alguns sites) em contraposição a uma Internet de 1ª classe, capaz de acessar qualquer endereço mediante o pagamento daqueles que possuem condições para tal.

Trata-se claramente de censura: uma empresa privada passa a ser responsável por decidir aquilo que pode ou não ser acessado na Internet. A diferença, neste caso, é que a censura deixa de ser estatal e motivada por interesses políticos, como já aconteceu no passado, para torna-se privada e com motivações econômicas. Será que esse ente privado permitirá o acesso a algum serviço que ameace os seus negócios no futuro?

Independente de exercer ou não censura, a resposta me parece bastante clara: é preciso recuperar o interesse público e permitir que instituição alguma, seja ela governamental ou privada, defina aquilo que pode ou não ser acessado na Internet.

Texto publicado originalmente na revista Digitalks #9